"Dar a mão a alguém sempre foi o que esperei da alegria. (...) Enquanto escrever e falar vou ter que fingir que alguém está segurando a minha mão.Oh pelo menos no começo, só no começo. Logo que puder dispensá-la, irei sozinha. Por enquanto preciso segurar esta tua mão - mesmo que não consiga inventar teu rosto e teus olhos e tua boca. Mas embora decepada, esta mão não me assusta. A invenção dela vem de tal idéia de amor como se a mão estivesse realmente ligada a um corpo que, se não vejo, é por incapacidade de amar mais. Não estou à altura de imaginar uma pessoa inteira porque não sou uma pessoa inteira. E como imaginar um rosto se não sei de que expressão de rosto preciso? Logo que puder dispensar tua mão quente, irei sozinha e com horror. O horror será minha responsabilidade até que se complete a metamorfose e que o horror se transforme em claridade. (...) Por enquanto estou inventando a tua presença, (...). Por enquanto eu te prendo, e tua vida desconhecida e quente está sendo a minha única íntima organização, eu que sem a tua mão me sentiria agora solta no tamanho enorme que descobri. No tamanho da verdade?(...)Dá-me tua mão desconhecida, que a vida está me doendo, e não sei como falar - a realidade é delicada demais, só a realidade é delicada, minha irrealidade e minha imaginação são mais pesadas. (...) Um passo antes do clímax, um passo antes da revolução, um passo antes do que se chama amor. Um passo antes de minha vida - que, por uma espécie de forte imã ao contrário, eu não transformava em vida; e também por uma vontade de ordem. Há um mau-gosto na desordem de viver. E mesmo eu nem saberia, se tivesse desejado, transformar esse passo latente em passo real. Pelo prazer por uma coesão harmoniosa, pelo prazer avaro e permanentemente promissor de ter mas não gastar - eu não precisava do clímax ou da revolução ou de mais do que o pré-amor, que é tão mais feliz que amor. A promessa me bastava? Uma promessa me bastava (...) Mas se eu gritasse uma só vez que fosse, talvez nunca mais pudesse parar. Se eu gritasse ninguém poderia fazer mais nada por mim; enquanto, se eu nunca revelar a minha carência, ninguém se assustará comigo e me ajudarão sem saber; mas só enquanto eu não assustar ninguém por ter saído dos regulamentos. Mas se souberem, assustam-se, nós que guardamos o grito em segredo inviolável. Se eu der o grito de alarme de estar viva, em mudez e dureza me arrastarão pois arrastam os que saem para fora do mundo possível, o ser excepcional é arrastado, o ser gritante (...) Às vezes - às vezes nós mesmos manifestamos o inexpressivo - em arte se faz isso, em amor de corpo também - manifestar o inexpressivo é criar. No fundo somos tão, tão felizes! pois não há uma forma única de entrar em contato com a vida, há inclusive as formas negativas! inclusive as dolorosas, inclusive as quase impossíveis - e tudo isso, tudo isso antes de morrer, tudo isso mesmo enquanto estamos acordados. (...) Pois o estado de graça existe permanentemente: nós estamos sempre salvos. Todo o mundo está em estado de graça. A pessoa só é fulminada pela doçura quando percebe que está em graça, sentir que se está em graça é que é o dom, e poucos se arriscam a conhecer isso em si. Mas não há perigo de perdição, agora eu sei: o estado de graça é inerente. (...) De qualquer modo, viver é uma grande bondade para com os outros. Basta viver, e por si mesmo isto resulta na grande bondade. Quem vive totalmente está vivendo para os outros, quem vive a própria largueza está fazendo uma dádiva, mesmo que sua vida se passe dentro da incomuncabilidade de uma cela. Viver é dádiva tão grande que milhares de pessoas se beneficiam com cada vida vivida"
(Clarice Lispector - A paixão segundo G.H.)
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Um comentário:
Amei o texto!
Curto mt Clarice, acho ela incrível!!!
Gostei do blog. Já tô seguindo.
Abraçso!
:p
Postar um comentário